As investigações sobre possíveis fraudes na Série C do Campeonato Carioca continuam sendo feitas pelo Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-RJ), que já tem ouvido depoimentos de pessoas ligadas aos três clubes suspeitos de manipulação de resultados na competição (Brasileirinho, Duque Caxiense e São José). Mas novas evidências têm surgido desde o começo das suspeitas, no fim de maio, e prometem aumentar a atenção sobre o caso por parte das autoridades.
O ACESSO CARIOCA apurou pelo menos duas movimentações suspeitas em equipes da Quintona ao longo do campeonato. Além de reunir dados e ouvir depoimentos, a reportagem descobriu histórias que envolvem, entre outros detalhes, a troca e a barração repentina de jogadores sem maiores explicações e até o afastamento de um treinador, que teria acontecido, alegadamente, por motivo de doença. Entretanto, estes acontecimentos foram anteriores a algumas das maiores goleadas do campeonato, quase todas alvos de investigação pela maneira como aconteceram dentro de campo.
As fontes às quais o ACESSO recorreu, ou ainda que procuraram a reportagem, pediram para não serem identificadas. Até o momento, o TJD-RJ informou já ter iniciado depoimentos de pessoas ligadas aos clubes, além de ter suspendido os contratos de jogadores que atuaram por eles, mesmo sem comprovação de que teriam participado de qualquer esquema. Na primeira de uma série de reportagens sobre o caso, o relato é sobre como diversas ações internas em um dos clubes investigados pela Justiça levantaram suspeitas que partiram dos próprios jogadores.
Troca de técnico e goleiro deixam time em alerta
Fundado em 2005, o São José disputou, na atual temporada, seu sétimo ano no profissionalismo. Acostumado aos níveis inferiores, o clube de Itaperuna transferiu sua gestão para o empresário William Rogatto e firmou uma parceria com o Esportista, projeto de futebol que já esteve ao lado de outros clubes profissionais do estado, como o Santa Cruz. Dessa forma, o trabalho parecia ser bem estruturado para uma Série C, ainda que com menos estrutura e investimento do que outros clubes.
Só que os problemas, de ordem aparentemente financeira, começaram logo nas primeiras rodadas. Sem inscrever jogadores a tempo, o São José perdeu seus dois primeiros jogos por WO. Em todo caso, o problema é corriqueiro na Quintona; como prova disso, o time venceu o Bela Vista, que também não tinha inscritos no campeonato, sem precisar entrar em campo e já na rodada seguinte. Assim, a estreia para valer seria num jogo contra o Riostrense, pela quarta rodada.
De fato, em campo, o time treinado por Ede Júnior não fez feio: no dia 21 de maio, a equipe venceu por 2 a 1, no Marrentão, e passou a somar seis pontos, considerando-se ainda a vitória por WO. Um dos destaques da partida foi o goleiro Juninho, que era um dos únicos dois jogadores da posição no elenco do São José. Mesmo com a boa atuação, ele acabou substituído por seu reserva para o jogo seguinte, contra o Profute, em Bonsucesso.
A mudança em si não parecia causar grande impacto. Mas, diante da força do adversário, no dia 25, o São José acabou goleado por 5 a 1. O resultado em si poderia até não ter causado grande surpresa, mas as suspeitas começaram a partir dos dias seguintes: o técnico Ede Junior deixou o comando da equipe, alegadamente por razões médicas. Já no dia seguinte à goleada, chegava ao time Bruce Taylor, que passou a comandar os treinamentos da equipe.
De acordo com quem frequentava os treinos do São José, Bruce e o goleiro inicialmente reserva tratavam-se como se já se conhecessem. Inclusive, o jogador teria mostrado uma postura de insubordinação em relação ao técnico, que não foi repreendida. Depoimentos dados à reportagem apontam que “o goleiro mandava mais que o treinador”. Apesar disso, não houve mudança no posto de titular e o time foi para campo no dia 29, contra o Atlético Carioca, na estreia de Bruce como técnico. Em campo, nova derrota, desta vez por 4 a 1.
— Não tinha explicação trocarem o goleiro. Desde esse jogo do 5 a 1 (para o Profute), a gente suspeitou. Até pelas atitudes entre eles mesmos, no treino. O goleiro ia treinar quando queria, xingava o Bruce, a voz dele prevalecia. Tinha até uma casa em que o treinador ficava com os jogadores indicados por eles — afirma uma das fontes procuradas pela reportagem.
À essa altura, uma parte dos próprios jogadores do São José já suspeitava de fraude. Veio, então, o jogo contra o CAAC Brasil, no dia 3 de junho. Juninho, que fora titular no primeiro jogo, voltou à baliza titular. Em campo, o São José chegou a ficar com dois jogadores a mais, pela expulsão de atletas do CAAC, mas não passou de um empate em 1 a 1. No dia seguinte, Bruce repreendeu o elenco pelo resultado e mostrou sua insatisfação por não terem conseguido vencer a partida, mesmo com os adversários tendo apenas nove homens. O discurso era de que o time precisava de reforços mais experientes a partir dali.
— O Bruce veio querer esculachar a maioria. Falou um monte de coisa para cada jogador, que o time era sem espírito. E começou a conversa de que os caras (CAAC) tinham amassado a gente, mesmo com jogador a menos, e que no nosso time não tinha jogador profissional, cascudo. Aí é que a gente percebeu que o técnico também poderia estar envolvido. Para o jogo contra o Barcelona, já estava todo mundo pronto para cobrar o goleiro no vestiário, porque ele é que seria o titular, de novo — relata outra fonte anônima.
Porém, o jogo contra o Barcelona não aconteceu, já que o clube azul e grená não pagou dívidas referentes ao borderô de sua partida anterior e perdeu por WO. O São José, portanto, só voltaria a campo no dia 15 de junho, em Petrópolis, para enfrentar o Vera Cruz. E foi este jogo que marcou não só o ápice das suspeitas até para quem estava de fora, mas também um ‘racha’ definitivo entre os jogadores e a diretoria.
São José joga sem goleiro reserva; pau quebra no vestiário
Naquela semana, chegaram ao São José vários jogadores, supostamente sob indicação e aprovação da gestão e da comissão técnica, após as cobranças feitas por causa do empate com o CAAC. Apesar dos muitos possíveis estreantes para o jogo em Petrópolis, William teria dito que conhecia boa parte deles, com quem já teria trabalhado no futebol paulista. No último treino antes da viagem, na véspera do jogo, Bruce sacou dois titulares, ambos do setor de defesa, colocando atletas que tinham acabado de chegar.
No dia do jogo, a surpresa: os titulares barrados da defesa não foram sequer relacionados, ficando fora até do banco de reservas. O atacante Jessé, artilheiro da equipe até então, também deixou o time titular, dando lugar a outro estreante que tinha acabado de chegar do clube. E o goleiro reserva voltou ao onze principal, mas desta vez sem nenhum reserva: Juninho também ficou fora da relação e nem viajou com a equipe, mesmo sem estar machucado.
Quando a bola rolou, na quarta-feira à tarde, o São José até começou bem. Logo aos quatro minutos, abriu o placar com um gol de Lucas Avelino. Mas as coisas começaram a virar ainda no primeiro tempo. O time levou três gols seguidos, aos 27, 30 e 33 minutos, dois deles em bolas perdidas pela própria defesa. No intervalo, a indignação de alguns dos jogadores gerou uma grande confusão nos vestiários.
Dois jogadores foram diretamente cobrar os estreantes do setor defensivo, que tinham falhado nos lances dos gols, numa briga que teve empurrões e tentativas de agressão. No fim, a equipe voltou para o segundo tempo sem os envolvidos na briga e o São José ainda levaria mais quatro gols, perdendo por 7 a 1. A natureza da derrota e dos gols sofridos passa a chamar atenção do público que não conhecia a situação internamente. Nos comentários de uma transmissão ao vivo do jogo, internautas chegam a detalhar o que seria um esquema de manipulação através de apostas pela Internet (veja abaixo).
— A gente correndo para caramba, se esforçando o campeonato inteiro, fazendo de tudo durante os jogos, para virem os caras na parte defensiva e já fazerem tudo. O goleiro caía para o lado errado, sem explicação. Aí é que todo mundo se revoltou, mas muitos jogadores ficaram com medo de falar alguma coisa publicamente, por medo de represálias — relata um dos jogadores.
‘Time-fantasma’ entra em campo com registros falsos
Para a partida contra o Zinzane, quatro dias depois, a comissão técnica prometeu divulgar os relacionados numa sexta-feira à noite, mas isto nunca aconteceu. No sábado, alegando falta de recursos para alugar uma ambulância, o técnico Bruce Taylor comunicou aos jogadores que não haveria partida e que o São José perderia por WO. Além disso, afirmou que os jogadores estavam dispensados, já que a nova derrota sem entrar em campo significaria a eliminação do clube da Quintona. Assim, nenhum atleta se apresentou para o jogo de domingo, mas a maior surpresa viria a seguir.
No domingo pela manhã, o São José chegou ao Marrentão para enfrentar o Zinzane, mas sem nenhum dos jogadores que tinha atuado durante todo o campeonato. A diretoria buscou outros atletas, que não estavam oficialmente inscritos na equipe, para entrar em campo. Não bastasse a evidente irregularidade, a equipe ainda levou a maior goleada do campeonato: incríveis 11 a 0.
Ainda pior é que os números de registro de contratos que aparecem na súmula são os mesmos dos jogadores que tinham atuado diante do Vera Cruz. A falsificação é grosseira: apenas os nomes a as identidades dos ‘jogadores fantasma’ são alterados em relação à súmula do jogo anterior. Sequer houve o cuidado de retirar os números de contrato em três linhas em branco, onde não há o nome de nenhum atleta (veja a comparação abaixo).
— A gente está punido por uma coisa em que nem teve culpa. Usaram o nosso registro de atleta para jogar contra o Zinzane, de todos os 11 atletas. Não sei nem como o delegado da partida conseguiu permitir que o jogo acontecesse dessa forma. Incrível. E aí, a gente ainda é punido por causa de atletas fantasma — afirmou um dos jogadores dispensados na véspera.
De fato, o delegado Paulo Vitor Matta Blanco, no relatório da partida, indicou que “não houve ocorrências”. Para os atletas que haviam sido dispensados um dia antes, a notícia de que o jogo estava acontecendo naquela manhã de domingo, ainda mais com uma goleada, foi uma surpresa. Especialmente pelo contexto dos gols: quando o segundo tempo começou, o Zinzane vencia por 2 a 0; somente 13 minutos depois, o placar já mostrava uma goleada por 10 a 0. Foram oito gols anotados neste espaço de tempo, dando uma média de um gol marcado a cada um minuto e 37 segundos.
Após a goleada sofrida, o São José acabou suspenso do restante do campeonato, mas só tinha mais um jogo por fazer. Em sua história, o clube esteve envolvido anteriormente num esquema de manipulação de resultados, em 2019. Na altura, o então gestor de futebol do clube, Maurício Pelegrini, foi banido do futebol, enquanto o presidente Adílson de Souza foi suspenso por um ano.
Procurados pela reportagem, o gestor William Rogatto, o técnico Bruce Taylor e o goleiro não foram encontrados para comentar o caso.
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