A história do futebol do São Cristóvão tem personagens heroicos, mas também é marcada por alguns momentos inesquecíveis de dor. Se tantos times já perderam atletas na plena forma, poucos foram atingidos tantas vezes pelo azar quanto o time cadete. Desde seu início, a morte repentina de jogadores importantes e marcantes sempre rondou o clube, forjado não só por vitórias e derrotas, mas também por uma dor difícil de descrever e que nem 125 anos apagam totalmente.
Cantuária: o primeiro ídolo, o primeiro choque
João de Menezes Cantuária nasceu em São João del Rey, em 29 de setembro de 1893. Neto do Marechal João Tomás de Cantuária, que combateu na Guerra do Paraguai e que foi Ministro da Guerra no governo de Prudente de Morais, era portanto de linhagem nobre. Ainda na adolescência, mudou-se com a família para o Rio. Era irmão de Dócio Cantuária, com quem jogaria anos mais tarde e também dividiria a paixão em comum pelo esporte e, sobretudo, pelo futebol.
Cantuária estava na reunião histórica, ao lado de outros 20 jovens, que fundou o São Christóvão Athletic Clube, em 5 de julho de 1909. Jogou por Riachuelo, Palmeiras e Mangueira, passando de vez à primeira equipe cristovense em 1913. Com qualidade e de liderança, não demorou para virar capitão e treinador, mesmo tão jovem. Afinal, tinha moral por ser um dos fundadores do clube, que ganhava notoriedade.
E foi com Cantuária que o São Cristóvão ingressou no Campeonato Carioca. O jogador, que atuava como médio, conquistou admiradores entre torcedores de seu clube, mas também de outros times. Foi chamado à Seleção Carioca e até a disputar dois jogos pelo Brasil, mas num período em que a Seleção Brasileira propriamente dita ainda não existia. Em Cariocas, foi um dos grandes artilheiros da história cadete, com 31 gols.
Entretanto, o ano de 1918 marcou a sociedade carioca de maneira negativa. A pandemia de gripe espanhola chegou ao Brasil em setembro, através de navios que chegavam da Europa e da África. Morreram mais de 100 marinheiros, em número que só foi igualado pela Primeira Guerra Mundial, que estava terminando. Por infortúnio, o saudável Cantuária acabou sendo um dos milhares de cariocas infectados.
Em 6 de outubro, numa vazia Rua Ferrer (por causa da enorme preocupação com a proliferação da doença), Cantuária faria seu último jogo com a camisa do São Cristóvão. Já estava doente, mas não contou a ninguém: queria jogar de qualquer jeito e atuou todo o tempo no empate em 1 a 1 com o Bangu. Ele não viajou com a Seleção Carioca para a Taça Rodrigues Alves, onde enfrentaria a Seleção Paulista. Luiz Vinhaes, companheiro de Cantuária no time, também ficou doente.
O Campeonato Carioca foi paralisado. O temor era tamanho que as autoridades pediram as pessoas não saíssem à rua, para evitar aglomerações. O Presidente da República eleito, Rodrigues Alves, sequer tomou posse, já que adoeceu e morreu posteriormente. Para desgraça do São Cristóvão, o destino de Cantuária não foi diferente: João morreu em 25 de outubro de 1918, aos 25 anos. Foi um dos mais de 15 mil cariocas vítimas da gripe espanhola.
Para se ter ideia do tamanho de João, quando ele faleceu, já era comum chamar o São Cristóvão de “o clube de Cantuária”. Sua morte enlutou um futebol que andava preocupado com a epidemia. O enterro de João Cantuária foi no cemitério São Francisco Xavier e o clube declarou luto oficial até o fim do ano. Um de seus últimos pedidos, no leito de morte, foi a um colega de time para que “não perdessem para o Botafogo”. O jogo foi adiado para 5 de janeiro, mas o pedido acabou atendido: seu time venceu por 3 a 2.
Fernando: o adeus em plena excursão
Corria o ano de 1968 e o São Cristóvão começava mais uma temporada. Já firmado na primeira divisão, o clube da Zona Norte não era o mesmo, mas ainda capaz de angariar simpatia e atenção de alguns torcedores. Entre os jogadores de um jovem plantel, destacava-se Fernando: revelado no próprio São Cri-Cri, o meia foi titular no Carioca anterior e era grande esperança de então.
Em fevereiro, o São Cristóvão fez uma excursão por Mato Grosso do Sul e São Paulo. Em campo, o time venceu Comercial e Operário, empatando ainda com o Misto, em Campo Grande (MS). Em seguida, os atletas foram se hospedar na pequena cidade de Castilho, à beira do Rio Paraná. No domingo, dia 18, estava programado um amistoso diante do Castilho Atlético Clube, no Estádio Valdomiro Moreira Aguiar.
Naquela tarde, o São Cristóvão venceu por 1 a 0 e Fernando esteve em campo, mas as comemorações duraram pouco. O time enfrentaria, dois dias depois, o Linense (SP), a pouco mais de 200 quilômetros dali. Alguns atletas foram por si, mas Fernando pegou uma carona com o zagueiro Aílton e o preparador físico Ferreira. Nos primeiros quilômetros, pela BR-262, a tragédia: chegando em Andradina, o automóvel tentou ultrapassar uma Rural-Willys e trocou de faixa. Os quatro passageiros foram atingidos em cheio, de frente, por um caminhão que vinha na direção contrária. Eram 21h30.
Os quatro ocupantes ficaram feridos. Aílton levou 12 pontos no antebraço e três na boca, mas sem maior gravidade. Entretanto, Fernando tinha lesões no peito e na cabeça. Horas depois, já na madrugada de segunda-feira, o coração do jogador deixaria de bater, no Hospital de Andradina: era mais uma morte trágica na história do São Cristóvão. Ferreira, um dos sobreviventes, fez o translado do corpo para o Rio de Janeiro. A excursão acabou ali e o então presidente, Luis Desideratti, ordenou a volta imediata de todos. Fernando Rufino morreu aos 22 anos.
As versões eram conflitantes. Embora a maior parte dos jornais falasse em acidente, o Jornal dos Sports publicou que um jogador do Castilho teria se oferecido para dirigir, mas estava embriagado. O fato é que Fernando poderia nem ter viajado: Marcílio, volante do Madureira e amigo do jogador, disse que o parceiro só foi à excursão pois renovou o contrato dias antes da viagem e, do contrário, não iria. Meses depois, um torneio que levou seu nome de Fernando contou com Campo Grande, Madureira, Olaria, Portuguesa e o próprio São Cristóvão. O título ficou com o time bariri.
Bellot: na Figueira de Melo, até o fim
Um sorriso fácil, jeito simpático, 1,76m de altura e madeixas encaracoladas pendendo de uma cabeça ligeiramente calva. Josenildo Bellot ganhou as manchetes de todo o país aos 46 anos, quando atuou pelo São Cristóvão em uma partida profissional. Com o time na segunda divisão do Carioca, o veteraníssimo goleiro já era uma espécie de “faz-tudo” dentro do clube, mas pouca gente conhecia sua história com os cadetes.
O pernambucano de Goiana já tinha uma respeitável trajetória no futebol brasileiro. Era uma espécie de andarilho, mas encontrou na Figueira de Melo o lugar ideal para descansar. Josenildo chegou ao Rio ainda menino para defender a base do America. Lá, ficou 12 anos, saindo posteriormente para rodar o país. Jogou em São Paulo, Goiás, Pernambuco, Piauí, Mato Grosso… Até chegar ao São Cristóvão para a Copa João Havelange de 2000. Chegou a atuar pela Portuguesa, mas logo voltou.
E foi no São Cristóvão que ele fez história: pouco a pouco, Josenildo virou referência e foi driblando a idade. Dobrou a marca dos 40 anos, disputou a Segundona do Carioca e desenvolveu pelo clube um carinho fora do comum. Já mantinha uma escolinha de futebol em Oswaldo Cruz, na Zona Norte, quando se tornou membro da comissão técnica. Foi técnico, preparador físico, auxiliar, preparador de goleiros. E, de quebra, era relacionado no banco, para alguma emergência.
Em 2009, com a demissão do técnico Jorge Madeira, coube a Bellot salvar o time do rebaixamento à Terceirona. E deu certo, com o time se salvando novamente no ano seguinte. Naquele ponto, ele já era um ídolo, embora talvez não soubesse disso. Foi inscrito no campeonato de 2011 e atuou alguns minutos, apenas para tornar-se o então recordista de idade em um jogo profissional no Rio de Janeiro. Entrou nos acréscimos contra o CFZ, último jogo do São Cristóvão no ano. Mas nem do simpático Bellot a tragédia se desviou.
Era uma sexta-feira, 23 de março de 2012. Bellot já não era jogador, nem treinador, mas compunha a comissão técnica. Após dar algumas voltas no campo, pela manhã, como sempre fazia, foi buscar algumas bolas para o treino que começaria em alguns minutos. Mas, na saída do campo, sentiu-se mal e caiu inconsciente, vítima de um infarto fulminante. Socorrido por funcionários, não resistiu e chegou morto ao Hospital Souza Aguiar. Tinha 47 anos e completava, naquela semana, suas bodas de prata.
No momento em que morreu, o ex-goleiro vestia uma camisa do São Cristóvão, a mesma que ninguém tantas vezes vestiu quanto ele: foram 432 partidas, um recorde absoluto e, provavelmente, inalcançável. Em vida e em morte, Bellot levou o clube no peito.