Quando o zagueiro Heltton usou o nome de Brendon para defender o Paulista de Jundiaí, na Copa São Paulo de Futebol Júnior de 2017, além de atuar com a idade adulterada, o Brasil conheceu o caso do ‘gato da Copinha’. Denunciado por falsificação de documentos, o jogador nascido em São Gonçalo acabou julgado pela Justiça Desportiva. E seu time, que já estava classificado à final, eliminado. Uma fraude que marcou o jogador, mas não o definiu: sua carreira prosseguiu e ele atuou com determinado sucesso em equipes cariocas.
Hoje com 29 anos, o jogador de 1,90m relembrou o caso em entrevista ao youtuber Cartolouco. Com passagens no Rio por Audax, Friburguense, Macaé, Maricá, 7 de Abril e Sampaio Corrêa, Elton é um zagueiro de alguns gols na carreira. Titular do Maricá na última Segundona, ele acaba de voltar do Iraque, onde também atuou profissionalmente. Embora cite uma origem de dificuldades, ele admite o tamanho do erro que cometeu. Por outro lado, garante que isso não o parou e que a personalidade e a fé o fizeram seguir em frente:
— Quando isso é exposto, ninguém quer saber onde estava a raiz do problema. Ninguém quer saber se sua casa encheu, onde você morava, se sua rua tem barricada ou se não tem. Se é de fácil acesso, se tua mãe ou teu pai trabalha, como vocês se sustentavam. Só querem saber da merda que você fez e meter o malho em você. E foi o que aconteceu comigo, eu fui só mais um.
Atualmente sem clube, Heltton observa propostas para a sequência da temporada, especialmente na Série A2 do Carioca. Leia abaixo a entrevista completa do jogador ao youtuber Cartolouco.
Como estava a Copinha em 2017?
— A Copinha estava vem disputada naquele ano. Tinha Vinícius Júnior, (Fabrício) Oya, Carlinhos. E não imaginava que eu time iria tão bem. Aí, fomos ganhando, ganhando… Quando foi ver, estávamos na final.
Quando você soube das denúncias?
— Foi no quarto do alojamento do CT. Depois da semifinal, um colega de quarto chegou e disse: ‘Parece que a casa caiu, estão falando de você aqui”. Aì, eu falei: “Nem sei do que esses caras estão falando, vou ali na casa da minha tia, comemorar a vitória”. Meti o pé, saí fora.
E como seus companheiros reagiram?
— A princípio, eles ficaram preocupados porque eu sumi. Mas alguns entenderam, outros nem tanto. A maioria, que era comigo, me deu uma moral. Mas teve muita gente que me criticou porque disse que não iria ter oportunidade. Uns saíram, mas graças a Deus a maioria teve a chance de atuar em bons lugares.
Qual o contexto que levou a tudo isso?
— Você é pobre, não pode quase nada, sabe disso, mas não sabe bem o porquê daquilo. Vi minha mãe passando muito perrengue, meu pai também. Pensei em tentar ajudar de alguma forma e tive essa oportunidade de fazer. Na verdade, eu não queria, mas todo sonho de moleque é ter muito, ter como ajudar. E eu quis, também. Foi quando comecei a jogar, no Norte e no Nordeste, já com a idade adulterada. E depois fui jogar a Copinha, mas isso não era planejado; aconteceu.
Quem te deu essa ideia?
— Ideia mesmo, fui eu que quis. Não posso falar que fulano ou sicrano me influenciou. Acabei não medindo muito as consequências, mas a situação era tão emergencial que eu falava que precisava fazer a mesma coisa. Mas não guardo mágoa, pois se tinha alguém errado na situação, era eu. Tudo foi consequência da atitude que eu tomei. E não guardei rancor, nem nada.
Depois da denúncia, no que pensou?
— Eu só não queria ir preso. Nem achei que ia jogar bola mais. Pelo que eu vivi, voltar a jogar futebol para mim já é uma grande vitória. O Vampeta me deu a oportunidade de voltar a jogar, no Audax. Depois, fui para o Macaé, joguei um Carioca, disputei um Gauchão e retornei ao Maricá, que é a minha casa.
— Quando isso é exposto, ninguém quer saber onde estava a raiz do problema. Ninguém quer saber se sua casa encheu, onde você morava, se sua rua tem barricada ou se não tem. Se é de fácil acesso, se tua mãe ou teu pai trabalha, como vocês se sustentavam. Só querem saber da merda que você fez e meter o malho em você. E foi o que aconteceu comigo, eu fui só mais um.
E como você começou a se reerguer?
— No terceiro dia depois da confusão, o Vampeta (ex-jogador, então presidente do Audax) foi no ‘Jogo Aberto’ dizendo que ia me dar oportunidade e pagar o advogado. E eu assistindo ao vivo. Fui procurá-lo no telefone, o empresário dele me mandou um número. Foi quando liguei o telefone de novo. Parecia uma roleta de Las Vegas, mais de 26 mil mensagens no WhatsApp. Lá embaixo, vem uma: ‘E aí, miau? Beleza?’. Abri a mensagem, vi a foto dele (Vampeta) e liguei.
Como foi essa conversa?
— Ele me procurou e me chamou para uma reunião. E onde foi a reunião? Camarote da Brahma, bicho pegando, Exaltasamba tocando do meu lado. Aí ele me disse: ‘você vai para o Audax e, quando a poeira baixar, a gente vai ver o que pode ser feito’. Graças a Deus, fomos campeões e tivemos um acesso. Graças a Deus, só oportunidades boas apareceram para mim.
Você sofreu muitas críticas da imprensa…
— Na época, o Vampeta me levou nas redes televisivas, para me retratar. Aí, ao vivo, o Godoy (ex-árbitro e comentarista) me amassou: ‘você e o Sérgio Cabral não têm diferença, você é mau caráter, não importa se veio da senzala ou do berço de ouro’. Falou que eu tinha que jogar com meu nome e a idade que eu tinha, que eu não ia virar nada. E eu tive que ouvir tudo calado, estava errado. Qualquer coisa que eu falasse, podia se voltar contra mim. Mas, graças a Deus, passou.
E como foi o processo de depor, ir à delegacia?
— Era para eu ficar cinco anos sem jogar, mas ‘papai Vamp’ conseguiu um advogado bom, o Dr. Lindenberg. A defesa ele foi incrível. Mas achei que a pior parte ia ser o jurídico. A delegada me fez um monte de perguntas, me colocou a maior pressão. Porque ela falou que ia saber se eu mentisse, porque era psicóloga também. Pegou meu depoimento, falei, depois ela disse que entendia, mas falou: ‘Não faz mais isso não, estou falando como mãe’.
Você também foi julgado no STJD…
— O que pegou mesmo foi no desportivo. Porque aí vem Globo, Band, Record… E os caras querem deitar, né. Eu ficar cinco anos (sem jogar) e só ia acabar em 2022. Ou seja, não ia mais jogar futebol. Eu estava lá, naquela cadeirinha do purgatório, aí vem o Dr. Lindenberg: ‘Não bota cinco anos para ele, não. Bota dez, acaba logo com a carreira do menino. Já não tinha muita oportunidade de ser alguém, agora então, com vocês fazendo isso, é mais prejudicial do que se ele fosse preso. Mas vocês estão fazendo isso porque a mídia está em cima, quando Sandro Hiroshi veio aqui, não fizeram isso. Quando o Márcio veio aqui, o Emerson Sheik, não fizeram isso. Porque já eram ricos. O garoto não tem nada”. Porque o documento não serviu para tirar dinheiro de ninguém, nem nada disso. Eu não tinha contrato assinado, nem carteira assinada. Era só um contrato de formação e o sonho, só isso. A gente ganhava o que o empresário ajudava a gente, mas não recebia nada do clube.
Como era sua família, seu entorno durante a infância?
— Minha família sempre foi muito tradicional, isso me ajudou muito. Mas, dos amigos que eu tinha, poucos sobraram, vamos dizer assim. No bairro, se fosse escolher o que tinha mais perto, era criminalidade e outras coisas mais. Sou um dos poucos da rua que sobraram, então posso dizer que fui um sobrevivente do bairro. O esporte me salvou.
Como foi passar por isso e superar toda a situação?
— Foi um divisor de águas para mim, uma coisa bem difícil de se passar. Mas foi necessário para mim, como homem, atleta, pessoa. Passei a ser eu mesmo. A vida, às vezes, te impõe coisas que parece que você não é suficiente, principalmente nessa carreira de futebol. Você bate tanto a cara em tanto lugar, que parece que ser só você não basta. Eu tinha um complexo de inferioridade em relação a isso, que era muito difícil. Tinha sempre um não, uma negação. Quando eu vi que minha vida andou, depois de virar aquela página, consegui caminhar e fazer minha vida andar. Eu tinha muita dificuldade em certos lugares, porque tinha gente que queria moldar meu jeito de ser. As pessoas querem te colocar num padrão, te impõe algo que ela queira você tenha, em vez de aceitar quem você é. Foi quando eu entendi que estava tentando ser um monte de coisa que não era eu. E Deus me abriu as portas e, por eu ser eu mesmo, consegui.
Você sente que deu a volta por cima?
— Foi uma situação difícil, mas hoje o olhar das pessoas é como se eu tivesse dado a volta por cima. Graças a Deus, eu me sinto um vencedor por ainda estar jogando futebol. Essa história, para mim, é como uma cicatriz, sabe? Lembro que eu me machuquei, mas já está fechado. Doeu na hora, passei por um processo, mas essa marca que ficou foi parte da minha vida e não me diminuiu: me fez crescer e mais forte.
O que dizer para quem está começando a carreira?
— Não deixe que ninguém te diminua ou te faça pensar que você não é capaz de cumprir aquilo sendo você mesmo, porque você sempre é. Deus te fez assim, irmão. Então, é assim que você vai ser e vai conseguir suas coisas, é nessa capacidade que Deus te colocou. E fé: muito foco, muito trabalho, muita força de vontade, que a coisa acontece.
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